Makarora é também uma pequena vila, com uma pista de pouso para vôos panorâmicos, um camping, um Bed and Breakfast (B&B) e um posto de gasolina com uma loja de conveniências e restaurante. Chegamos às 14 horas e não havia mais almoço. No B&B fomos atendidos pela dona, Keena, mulher de seus 40 – 50 anos, pele queimada do sol, muito simpática, de um sorriso franco, de dentes bem brancos, em roupas de trabalho de fazenda e botas. Deu-nos um chalé no alto do terreno, com vista para o vale onde corria um rio e montanhas altas em volta. Nos recheou o frigobar com iogurte, leite, pão. Do chalé se avistava o rio Haast, largo e raso, com pedras em todo o leito, circundado pela cadeia de montanhas altas, com neve nos picos e pequenas cachoeiras que se formavam no alto dos morros.
Era cedo para jantar, fui andar pelas redondezas, acompanhando um riacho que descia das montanhas vizinhas e percorria a floresta ao lado do albergue. A água gelada era cristalina e refletia o sol de maneira brilhante, quase ofuscante, sobre um leito de pedras de cor cinza clara que faziam chuviscos de água saltarem como fagulhas incandescentes a espaços regulares. Demorei-me observando a floresta e o riacho e quando retornei ao restaurante, por volta das 20h, ainda muito claro, o jantar já havia encerrado.
Tinha me preparado espiritualmente para comer um "lamb shank" (perna de cordeiro) com purê de batatas e ervilhas frescas e encontrar o restaurante fechado foi frustrante. Voltei para meu chalé e jantei novamente queijos locais, presunto cru e cozido e pão, que havíamos trazido. E claro, vinho. Estava frio e a noite caiu rápido. O céu mostrava-se com uma quantidade inigualável de estrelas naquele local deserto e com poucas luzes.
Apesar da nitidez das estrelas, não consegui identificar as constelações como aqui. Tentei achar, sem sucesso, Escorpião, Órion, sem conseguir. Só o Cruzeiro do Sul. Sentei na escada de madeira do chalé, bem agasalhado e tomamos, eu e minha companheira, duas garrafas inteiras de “Show Reserve”, um vinho especial da vinícola australiana Rosemount. É um corte de Cabernet Sauvignon e Shiraz, encorpado, potente, com acentuado sabor de pimenta preta e especiarias. Não foi uma alternativa ruim ao "lamb shank".No dia seguinte saí bem cedo para pedalar. O sol ainda estava próximo à linha do horizonte mas estava forte, e o céu sem nuvens, de um azul bem claro. Saí bem agasalhado, de calça de lã sobre a bermuda, dois casacos de lã sob meu casaco amarelo e o “passa montanha”, uma peça de tecido sintético que cobria o pescoço, a boca e o nariz.
Iniciei a pedalada. A estrada ficava no vale do rio Haast que ficava à minha direita. E as montanhas à esquerda, projetando suas sombras longas na estrada. Embora ainda bem cedo, o sol estava forte e aquecia bem, mas quando a estrada percorria as sombras das montanhas, sentia um frio desconfortável. Era dia 27 de dezembro e não havia carros. Podia-se ouvir a sinfonia dos cantos dos pássaros, mudando a cada trecho do caminho novamente. Após duas horas de pedalada, as montanhas à esquerda deram um lugar a um lago azul, Lake Hawea, em cujas margens pastavam centenas de ovelhas. Era uma região de fazendas, com terreno menos acidentado e pastagem de ambos os lados.
Quando parava a bicicleta para observar o lago, as ovelhas paravam de pastar e ficavam olhando, curiosas.
Após mais 1h de pedalada, uma subida longa em direção a uma garganta que atravessava os dois lagos, o Hawea e o Wanaka. Este lago era parecido com o anterior, mas a região voltou a ficar acidentada, com menos fazendas e mais montanhas.
Interessante e divertido até nos detalhes. Os vasos sanitários têm aranhas e escorpiões que parecem reais.
O albergue de Wanaka (YHA Wanaka, Purple Cow) foi um dos melhores da viagem. A recepcionista era uma moça de São Paulo formada em direito e fazendo pós-graduação em direito ambiental lá.
Não poderia ter escolhido lugar melhor. As leis ambientais da Nova Zelândia são rigorosas e seguidas à risca.
Desta vez, fiquei de olho no relógio para não perder a hora do jantar. Havia almoçado frutas secas e castanhas e estava com muita fome após a pedalada de 68km. m pouco antes da 18h – hora em que se inicia o serviço de jantar – sai para caminhar pela vila e passei em uma pequena loja de vinho. Tomei um copo de Sauvignon Blanc enquanto conversava com o dono, Mr. John Hallum (Pembroke Wines&Spirits Ltd.; www.pembrokewines.co.nz)
Após alguns minutos de conversa, perguntei por que tinha mãos de lavrador, se era dono de uma loja de vinho. Ele disse-me sorrindo, meio sem jeito, que até bem pouco tempo atrás tinha uma fazenda de ovelhas. Era um sujeito simpático, e após alguns minutos de conversa ficou falante.
Vendia e elogiava os vinhos de Otago Central, onde estávamos. E com razão. São os melhores sauvignon blanc e pinot noir da Nova Zelândia, embora os cabernet sauvignon da região de Marlborough, mais ao norte, são surpreendentemente bons.
Achei que fosse tomar bons shiraz, mas me decepcionei. Não tomei um que se comparasse aos australianos. O John nos indicou o Capriccio, um restaurante que ele e os locais frequentavam. Apesar do nome os pratos principais eram carnes. Jantei mariscos da região("green lips") e vieiras como entradas, acompanhados de um espumante varietal de sauvignon blanc excepcional.
Depois, como segunda entrada, um "eye rib", o coração da alcatra de 500gr, que dividi com minha companheira, acompanhado de um pinot noir, também de Otago Central.
Quando pedi o "eye rib" a garçonete informou que era um prato servido mal passado e disse que o chef se recusa a passar desse ponto, disse isso sorrindo. Comecei a gostar do chef.
A carne, de angus, era macia e saborosa. Apenas mal passada, sem tempero e sem sal. Moía-se a pimenta e o sal no prato, delicioso. E como prato principal, finalmente, costelas de cordeiro, também mal passadas e sem tempero para não atrapalhar o sabor inigualável da carne. Não havia espaço para sobremesa.
Voltei ao albergue por uma rua que circundava o lago Wanaka que dava nome à vila.
O vento cortante e frio já não incomodava mais depois daquele jantar. Senti-me satisfeito, aquecido e com as forças restabelecidas.
No dia seguinte o tempo também estava bom, não fazia frio e nem ventava.
De Wanaka a Queenstown, 78 km, fui por uma estrada secundária, chamada rota 6, desviando da autoestrada.
Na saída, contornando o lago Wanaka tive que pedalar com cuidado, desviando dos marrecos que faziam festa na margem.
A estrada mantinha o padrão das anteriores, estreita, sem acostamento, com asfalto abrasivo, com subidas e descidas não tão íngremes, mas bastante longas. E muito movimentada, prenunciando a vizinhança de Queenstown, a maior cidade da região, capital dos esportes radicais.
Estava terminando minha viagem de bice. Era o último trecho da pedalada. Eu continuaria de carro contornando a ilha sul e subindo pela costa leste até Christchurch, onde tomaria o avião de volta.
Enquanto pensava, feliz por ter comprido as etapas difíceis, penosas, mas de beleza indescritível, e triste por estar chegando ao termo. Tive mais uma e talvez a maior surpresa dessa viagem, cheias de novidades e imprevistos. Depois de uma subida muito íngreme e muito longa que se estendia cada vez mais a cada curva, cheguei ao topo da cadeia de montanhas The Remarkables, o monte Double Cone, a 2.300 m de altitude.
E tive uma vista de tirar o fôlego, literalmente, depois de pedalar forte e ininterruptamente por mais de uma hora na última subida, exausto, com câibras e sede. É uma vista de rara beleza. Após algum tempo sem ver o mar, surge o lago Wakatipu, imenso, azul, brilhante, se espraiando majestoso, cercado por montanhas verde escuro cortadas por cachoeiras desde o topo. E nos vales, ovelhas aos milhares, pintando de branco as pastagens longínquas.
Fiquei um tempo observando a paisagem antes de pôr a bice no rack do carro e seguir até Queenstown. É o tipo de visão que tira a fala e o pensamento. Fica-se vazio, apenas olhando, sem falar, sem pensar.
Queenstown é uma cidade bastante movimentada e barulhenta, com muitos jovens de toda parte do planeta. Devolvi a bici no local indicado. Eu havia levado meu banco, meus bar-ends e minhas ferramentas e pedi ao rapaz que me recebeu para retirá-los. Ele simplesmente os retirou, me entregou e levou a bice para dentro.
Eu disse: -Você não vai conferir se está tudo ok? computador, etc.?
Ele disse: -Não, está tudo bem.
-Você não tem que assinar nada, dar-me um recibo que entreguei a bice em ordem?
-Não, está tudo bem (It’s good). Virou as costas e entrou na oficina. Frustrante e inusitada essa eficiência e confiabilidade.
Em Queenstown comi o melhor hambúrguer da minha vida no Ferg Burgers, acompanhado de uma cerveja local.
No dia seguinte continuei a viagem até Te Anau, rumo ao sul, deixando para trás os Alpes neozeolandeses e entrando numa região de fazendas.
Nessa parte da ilha além das ovelhas e bois, viam-se fazendas de veados, alpacas, lhamas, renas. E na primeira oportunidade experimentamos “venison”, carne de veado, uma iguaria local muito elogiada pelos habitantes. Tem sabor de caça bem peculiar. Não é tão seca, mas perde muito em sabor para o cordeiro e o angus.
As cerejas da região são enormes, suculentas e baratas, vendidas pelos fazendeiros na estrada. Te Anau é uma cidade pequena com apenas três ruas. A maior delas margeando o lago que dá nome à cidade, um dos maiores da ilha.
Nesse dia 31 de Dezembro, fomos jantar no Moose. Um restaurante peculiar, típico da ilha. Espaçoso, barulhento, com pessoas em pé, próximas às mesas, bebendo cerveja, rindo e falando alto. Tem-se que ir ao balcão, fazer o pedido, pagar e ir até a mesa, levando uma bandeirinha com um número.
A moça do caixa entrega a garrafa de vinho e os copos e você os leva até a mesa que você escolheu, sem toalha.
Depois a garçonete leva o prato e os talheres até você.
Novamente a carne não decepcionou. Perfeita, macia, sem tempero, grelhada à perfeição.
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