terça-feira, 30 de agosto de 2011

MACARRÃO COM LINGUIÇAS E ERVA DOCE

                                                             
Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata tudo.

A espriguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade. (Carlos Drummond de Andrade)
                                                               
Num domingo friorento quase todas famílas reunidas: mãe, filha, tia, irmãs, cunhados e sobrinhos. Só um macarrão bem caprichado para agradar a todos.
INGREDIENTES: (para muita gente!)
3 pacotes de espaguete (usamos o spaguetti número 5 da Barilla)
4 kg de linguiça de pernil
1 kg de linguiça calabresa
3 kg de tomates sem pele picados
1 kg de tomates sem pele cortados ao meio 
1 kg de cebolas picadas
1 cabeça de alho picada
3 latas de tomate pelatti
2 ervas-doces frescas cortadas em pedaços grandes
folhinhas de manjericão a gosto
azeite de oliva, sal e pimeta-do-reino a gosto
queijo parmesão ralado
MODO DE FAZER:
1. Primeiro prepare as linguiças: afervente-as, tire a pele e pique-as em pedaços médios.  Em uma frigideira antiaderente frite as linguiças. Reserve.
1.  Em uma panela grande refogue no azeite o alho e a cebola.
2. Acrescente os tomates picados e as linguiças fritas. Cozinhe em fogo baixo até os tomates desmancharem.
3. Junte os tomates pelatti, as ervas-doces e deixe o molho engrossar.
4. Acerte o sal e a pimenta-do-reino
5. Quando estiver quase pronto acrescente os tomates cortados ao meio. Cozinhe mais um pouco.
6. Junte o espaguete cozido e o incorpore ao molho.
Nos fundos da casa da M., as orquídeas amarelas enfeitavam o quintal.
                                                                                                                               

NOVA ZELÂNDIA (segunda parte)

Tomei o trem para Greymouth, na costa oeste, atravessando os Alpes Neozelandeses, uma cadeia de montanhas que se estende de norte a sul da ilha.  Deve-se fazer e pagar o transporte da bicicleta, 10 dólares, com antecedência, via internet (www.tranzscenic.co.nz). A bici vai num vagão especial, montada.

Em Greymouth fiquei no albergue Dukes (Dukes Backpackers, http://www.duke.co.nz/), administrado pelos próprios donos, um jovem casal de israelenses, simpáticos e prestativos. As acomodações eram básicas, mas o aquecedor do quarto era muito barulhento. Todos os quartos dos albergues e motéis que fiquei tinham aquecedor.

O trem chega a Greymouth às 13 horas. Dá tempo de ir visitar as “Pancake Rocks”. São formações rochosas à beira-mar, feitas de depósito de sedimentos, conchas, corais, em camadas caprichosamente sobrepostas em forma de panquecas. Distam 45 km ao norte, pelo litoral.
No dia seguinte, parti cedo, ansioso, agitado. Como quando era pequeno e ganhava presente de Natal à noite e não via a hora de amanhecer, mal dormindo, para estrear a bicicleta ou a bola. Vesti meias grossas, com bota, bermuda e camisa, blusa e casaco. O dono do Albergue, Kuri, ao ver-me saindo disse: Passou bloqueador solar?

Respondi: Não, tenho meu capacete.  

Foi o primeiro revés com o clima da NZ. O sol é muito forte. Queima muito e não se percebe por causa do vento gelado. Depois lembrei-me que os maiores buracos na camada de ozônio ficam nos extremos da terra. Principalmente próximo ao pólo sul. Era onde eu estava.         

A saída de Greymouth foi frustrante. Eu estava ansioso por pedalar à beira mar e ao lado das montanhas alpinas, mas peguei uma autoestrada por uns 15 km. Depois, após algumas bifurcações, o trânsito foi diminuindo e a estrada finalmente adquiriu a característica da trilhas que gosto de fazer. Tinha apenas uma pista, estreita, sem acostamento, somente um gramado com pedriscos, de aproximadamente 1 m de cada lado da estrada. Sem movimento de carros. 

As estradas da NZ têm uma característica única e constante: o asfalto é áspero, parecendo que falta uma camada de piche por cima. Isso faz desagradável a viagem longa, numa bici sem suspensão e com pneus “slick”, mais duros, como era a Trek Specialized que aluguei.
Por isso procurava pedalar sobre a faixa contínua na lateral da pista. Essas faixas brancas de tinta grossa são lisinhas e fazem o pedalar mais macio e eficaz, porque diminuem o atrito. 

Mas uma dica: não faça isso com chuva, é queda na certa. Essas faixas são armadilhas em solo molhado.       
                                                                                                                  
A vista é grandiosa. Dá vontade de olhar várias vezes cada parte e pedir ajuda para ver. Os olhos não abraçam a vista, como queremos. À direita, o mar da Tasmânia, verde claro, cor de turmalina, quase sem contraste com o céu azul bem claro, luminoso. E à esquerda as montanhas dos alpes neozelandeses. E a estradinha estreita no meio.
  
Mas o que me surpreendeu mesmo neste primeiro dia de pedalada, foi a grande quantidade de pássaros da NZ.  
                                                                                                               
O tempo todo é uma sinfonia de cantos que vai mudando com o passar das horas. Bem cedo é um tipo de pássaros que cantam. Parece que são os pássaros maiores, porque o canto é mais grave. Quando o sol levanta e esquenta um pouco, aumenta o número de pássaros cantando, numa profusão que fica impossível de individualizar os cantos. Durante o dia todo, não há um momento de silêncio.  

Mas neste primeiro dia de bice, tive meu segundo embate com o clima. Apesar do sol muito forte, o vento era muito frio e incessante. A pedalada ficava pesada, embora não houvesse subida.

Esta primeira etapa de Greymouth a Ross tem 70 km. Teoricamente é tranquila, sem aclives importantes, mas eu não contava com o vento frontal permanente, muito frio. É um vento gelado que vem do pólo sul.  
                                                                               
O que realmente incomodava, além do esforço maior para pedalar, era a dor nos olhos que o vento provocava. Escolhi óculos de sol da “Oakley”, com lentes polarizadas, para aproveitar melhor os contrastes da paisagem. Porém são óculos de sol normais, não cobrem as laterais dos olhos como os óculos de ciclismo, que protegem bem do vento. A alternativa era fechar um olho, mantendo o outro aberto, por alguns minutos, depois trocar. Pedalei assim, procurando manter-me na faixa branca da lateral da estrada e alternando o olho aberto. Parece sofrido, mas não é. A paisagem, o perfume da estrada e a sinfonia incessante do canto dos pássaros compensam o esforço.   

Mais uma dica:não façam o trajeto norte/sul por causa do vento. E usem filtro solar!
 
Dormimos em Hari Hari. É uma pequena vila, com um motel e uma área de camping do lado direito da estrada, do lado esquerdo há um posto de gasolina com uma loja de conveniência e umas poucas casas, mas estava tudo fechado e deserto.   
                                             
Era 24 de Dezembro, final de tarde. A recepção do motel  onde fiz a reserva estava fechada, mas o dono deixou um bilhete colado na porta, dizendo que o quarto estava aberto e a chave na porta. Era só entrar e podia deixar a bice na garagem dele, que morava em uma casa nos fundos. Foi atencioso, fez um mapinha (como se precisasse) explicando onde era o quarto (o único a ser ocupado) e desejando feliz Natal. 

O que chamou minha atenção em Hari Hari, além de parecer uma cidade fantasma do velho oeste, foi a presença de um imponente e desinteressado pavão andando solto pela calçada. Quando me viu parou, ficou olhando enquanto eu o fotografava, depois continuou passeando calmamente.
 
De Hari Hari para Franz Josef Glacier são 62 km, passando pelo glaciar mais próximo ao mar que existe. Eu já esperava um trajeto difícil, porque haveria subidas íngremes e longas, com vento gelados e cada vez mais frios, quanto mais próximos do glaciar.  

Os primeiros 50 km foram tranquilos, não muito diferentes da etapa anterior, a não ser pelas subidas. Mas quem viaja de bici acostuma-se com subidas íngremes e longas. E a dica é: ter paciência. Pôr uma marcha mais leve e ir subindo sem pressa. Se forçar a pedalada ganha uma diferença de tempo irrisória e o desgaste é grande, pode custar caro. Pode-se chegar com cãibras no topo e comprometer o resto da etapa. Mas defrontei-me com outra surpresa provocada pelo clima da Nova Zelândia.                                               

Na estrada avistei o glaciar e a montanha envoltos em nuvens escuras e o vento tornou-se mais frio, quase insuportável. Mau sinal. Comecei a ficar preocupado, porque que era exatamente para onde eu estava me dirigindo.
                                                           
Comecei a ficar preocupado, porque que era exatamente para onde eu estava me dirigindo. Parei, hesitei por uns minutos, mas não tinha jeito, não tinha volta. Fui em frente, mais pela falta de alternativa que por coragem. Passei a pedalar com medo, sentindo ameaça de cãibras nas pernas.    

Cãibras são o fantasma do ciclista. Fica impossível pedalar e se você estiver em lugar deserto, longe de abrigo, vai passar maus bocados.  

Então começou a chover. Perdi a conta das vezes que tomei chuva pedalando. Sempre foi muito bom. A água escorrendo pelo corpo, esfriando os músculos, molhando os lábios, encharcando o solo e provocando aquele ruído bom das rodas da bice nas poças d’água acumuladas nas baixadas. Mas nunca tomei chuva com a temperatura tão baixa e ventos gelados contra.  

Na Chapada dos Guimarães e em Cuiabá, onde pedalo com mais frequência é sempre agradável quando chove. Já pedalei sob chuva em Curitiba nos meses de inverno e uma vez nas montanhas Cantábricas, com frio e granizo, próximo a San Juan de Ortega, terra da sopa de alho feita pelo bispo José Maria para alimentar os peregrinos fazendo o caminho de Santiago. Mas desta vez a coisa estava prometendo algo mais, amedrontador.  

Na Nova Zelândia, chuva próximo aos glaciares pode significar o fim da aventura e de tudo mais, pude perceber. Em pouco tempo meu casaco, que é mais apropriado ao frio que à chuva, começou a encharcar e eu sentia a água fria molhar minhas costas, provocando a desconfortável sensação de frio nos ossos.                                                                       

Com o frio a pedalada ficou mais pesada e comecei a ter cãibras.  As cãibras desta vez vinham não apenas nas panturrilhas e nas coxas como acontece às vezes, mas nos músculos pequenos também. Nos pés e nas mãos, encharcados, apesar da bota e da luva que cobria a mão inteira. Chovia forte, de maneira contínua e a chuva era muito fria. E ventava aquele vento do pólo sul.                                                                                           

O mar da Tasmânia, geralmente calmo, levantava vagalhões que podiam ser vistos de muito longe.  Comecei a ficar assustado. Era dia 25 de Dezembro e eu estava isolado e sozinho. Existem quatro milhões de habitantes na Nova Zelândia. Três dos quais na ilha norte.  E apenas um milhão em toda a ilha sul. Desses, 700 mil habitam a costa leste e apenas 300 mil em toda costa oeste, ou seja, já é um lugar pouco habitado, mas no feriado de 25 de dezembro estava totalmente deserto.                                                                                

Parei um pouco para avaliar melhor a situação. Minha previsão era pedalar 62 km, de Hari Hari a Franz Josef passando pelo glaciar. Eu já havia pedalado 50 km, faltavam 12 km para o ponto final da jornada.                                                                                                       

Mesmo naquele terreno íngreme e com vento forte contra, dificilmente levaria mais de duas horas. Mas a estrada seguia reta em direção à montanha do glaciar e sempre subindo. Nesse momento, já não se avistava mais a montanha, coberta por uma nuvem escura e espessa. Ou seja, para chegar ao meu destino eu deveria pedalar em direção à montanha enevoada, contra o vento gelado, em subida íngreme, com chuva forte e passar pelo Glaciar que a cada quilômetro fazia o vento e a chuva ficar mais frios.                                            

Não ia dar. As cãibras generalizadas me assustaram mais do que outra coisa. Você começa a perder o domínio do corpo. Avaliei que seria melhor esperar, porque nos 50 km que pedalei não tinha nada onde se abrigar. No caminho passei por uma vila de poucas casas e um bar que alugava quartos, mas estava tudo fechado. Eu havia confirmado com minha companheira de viagem, nos encontrarmos em Franz Josef.                                           

Tinha a esperança de que não me encontrando e vendo a chuva e o vento, ela voltasse, me procurando.                                                                                                                          

Portanto eu não podia me afastar muito da estrada. Deixei a bice com o alforje bem na borda do asfalto, encostada no pequeno poste de plástico flexível, pintado de branco que serve de sinalização a cada 1 km ao longo de todo o caminho. E deitei-me embaixo de único arbusto que tinha nas redondezas, a poucos metros da estrada. Nesta parte da ilha a vegetação é rasteira.                                                                                                                

A estrada fica entre o mar e as montanhas. As praias são estreitas e pedregosas e o capim, com pequenos arbustos, estende-se até o sopé das montanhas, onde começa a mata com as arvores. Não havia mais que arbustos para me proteger.                                            

Deitado e encolhido, fiquei completamente à mercê dos “sandflies” que são o inferno da Nova Zelândia. Na NZ não tem ursos, cobras, coiotes, pumas, mas tem os “sandflies”. São pequenos mosquitos pretos, parecidos com pequenas moscas, mas de uma velocidade no ataque e de uma voracidade insólitas. Nunca vi tanta eficiência e rapidez para picar, sugar sangue, voar e deixar uma coceira irritante no local. Surgem do nada aos milhões.           Minha posição me deixava vulnerável aos ataques porque me espremia entre o solo e o arbusto, deitado.                                                                                                                      

E quando tentava espantá-los, ou fazia qualquer movimento,  vinham as cãibras. A chuva caia por entre o arbusto e continuava a molhar. Apenas, os pingos eram maiores e não eram frontais e havia menos vento. De onde estava eu conseguia ver a estrada, mas nem um carro passava.                                                                                                               

Continuei esperando, preocupado, mas um fato novo assustou-me ainda mais. Meu corpo começou a tremer, incontrolavelmente. Era um tremor fino, constante, em todo o corpo. Eu sabia o que isso significava. Os tremores duraram vários minutos, depois sobreveio uma dormência nos pés e nas mãos, depois nas pernas e nos braços. E comecei a ter sono. Quase que automaticamente, tirei o capacete, pus embaixo da cabeça e pensei: vou tirar um cochilo. Cheguei a acomodar-me naquela posição não me importando mais com os "sandflies" que se revezavam, aos enxames para me picar.                                                   

A bota com as meias protege apenas os pés. A bermuda de pedalar vai até um pouco acima do joelho e eu estava com dois casacos, além da camisa da pedalada que é de tactel, um tecido que não retém suor. Sobre a camisa, eu usava um casaco também de tecido sintético, para inverno. E por cima, um casaco corta vento amarelo, próprio para esporte em clima frio. Mas com um detalhe: sem chuva.                                                                      

Nem um dos meus agasalhos era impermeável por muito tempo. Então eu estava completamente encharcado, próximo a um glaciar, em hipotermia, à mercê dos "sandflies" e da chuva.                                                                                                                            

Mas, minha preocupação logo transformou-se em franca desesperança, quando vi minha companheira passar por mim sem avistar a bice. Parecia-me impossível não ver. A bice estava a 1 metro, se tanto, do asfalto, em pé, encostada no pequeno poste branco, com um alforje na garupeira. O alforje é grande, azul e tem uma bandeira brasileira colado nele, por impossível que pareça, fiquei invisível. A chuva estava muito forte e com neblina, a visibilidade era pouca e a mesmice da paisagem acaba confundindo mesmo. Vi o corolla branco passar rapidamente com os faróis acesos e os limpadores de pára-brisa ligados no máximo, se afastando.                               

Pela primeira vez senti medo e achei que talvez não fosse dar. Achei que não sairia vivo dali. Com certeza não sairia se permanecesse onde estava.                                

Automaticamente, sem pensar, sem qualquer previsão, saí debaixo do arbusto, onde estava havia umas duas horas, tentando me conformar com a situação que afinal, eu havia provocado.                                                                                                                               

E apesar do frio congelante, subi na bice e retornei para onde iniciei a jornada. Era difícil manter-me na estrada, porque além da pouca visibilidade, estava sem sensibilidade nos pés e nas mãos. Era necessário concentração e esforço para trocar as marchas. Eu não conseguia me concentrar. Não estava raciocinando bem.                                               

Sempre tive curiosidade em saber o que pensa um alpinista que está preso na montanha e tem poucas esperanças de sobreviver.                                                                               

Como em situações extremas de pessoas que escalaram o Everest durante uma tempestade em 1996, no relato de John Krakauer (No Ar Rarefeito). Ou do Tuareg, no livro homônimo de Alberto Vazquez-Figueroa que se escondia dentro do abdômen de um camelo que ele havia sacrificado, para fugir do calor do deserto.                                                      

Um dos livros que marcou minha adolescência foi “Terra dos Homens” de Antoine de Saint - Exupéry (o do Pequeno Príncipe), onde o autor descreve um piloto de avião que às vésperas do Natal, cai com o avião, em plena noite, sobre uma geleira e sobrevive. O piloto começa a andar na direção de onde tinha avistado luzes durante o voo, umas poucas casas, mas que chegando lá estaria salvo. Em vários momentos quase sucumbiu ao cansaço, ao sono, e à hipotermia.                                                                                                             

Ele pensou em desistir, deitar-se, “descansar um pouco”, mas sabia da ilusão e do risco desse pequeno cochilo e continuou andando, até chegar meio morto a uma fazenda onde é socorrido. O autor descreve bem o que o piloto pensava naquela hora. Ele pensava na esposa e nos filhos esperando-o para a ceia de Natal. E por ser homem  tinha esperanças, além do instinto de sobrevivência de qualquer animal, que lhe dava forças, por isso o titulo do filme “Terra dos Homens”. Confesso que não pensei em nada disso. Todas as minhas energias estavam concentradas em me equilibrar sobre a bice e trocar as marchas. Eu havia perdido o automatismo de pedalar. Cada pedalada, troca de marchas, ajuste no guidão, tinha que ser pensado e era lento, Aprendi que nessas horas quem filosofa é o escritor.                                                                                                                             

Quem está lá não pensa, não tem forças. Só atua nas coisas básicas, no imediatismo da situação. Tentando não cair, não parar de pedalar. Não há pensamentos. Após pedalar algum tempo, não sei quanto, deparei-me com minha companheira. Eu voltei pela contra mão porque tinha esperança de que ela faria o trajeto de volta. E com meu casaco amarelo, indo na direção dela, seria impossível não me ver. Eu pedalava no meio da pista, não me importando com risco de ser atropelado (analisando hoje, depois de lembrar de como ela passou pela minha bici no acostamento sem ver, quase esbarrando nela, acho que o verdadeiro risco de vida que corri foi o de ser atropelado naquele momento).                

Tentei ajudá-la a pôr o rack no carro e a bice, mas não consegui. Não conseguia mover os dedos para amarrar a bice. Entrei no carro e liguei o aquecedor no máximo e fomos rapidamente para um albergue em Franz Josef.                                                                     

A única pergunta que fiz foi se tinha um banheiro privativo e água quente. Não conseguia articular as palavras direito. O maxilar não se movia e a língua estava grossa. Depois de meia hora no chuveiro, voltei a poder movimentar os dedos e a sentir os pés. Mas me movia ainda com lentidão.                                                                                                             

Somente no dia seguinte senti-me livre do torpor mental  em que fiquei. No dia seguinte não pedalei. Não estava me sentindo em condições físicas e nem adiantaria tentar, porque choveu o dia inteiro.
Aproveitei para percorrer de carro de Franz Josef a Haast. A idéia inicial era pedalar de Franz Josef a Lake Moeraki, um trecho de subida íngreme e curvas fechadas, com inúmeras cachoeiras brotando das montanhas. Uma visão inigualável. A mata densa, com árvores altas, morros com picos altos e escuros, a estrada formando um sulco na montanha, com pequenas cachoeiras a cada 100 ou 200 metros de ambos os lados, com um lago azul turmalina no meio, chamado Lake Paringa. É de tirar o fôlego. Com a chuva forte, as cachoeiras ganhavam força, jorrando água violentamente. Paramos para ver de perto a Thunder Creek Falls. Pode-se chegar bem perto da queda e é uma visão amedrontadora, pela grandiosidade da cachoeira. A estrada passa por uma garganta chamada Arthur Pass que faz a travessia dos Alpes de oeste a leste. Fomos até Haast, uma pequena vila de 300 habitantes  com dois ou três motéis, um posto de gasolina com restaurante e um pequeno mercado e um albergue confortável com lençol térmico, banheiro privativo com água quente e TV de plasma. Chovia muito.                                                                                        

Tentei chegar de carro no Lake Matheson mas a estrada estava alagada e não deu para ir. Tive que voltar e jantar no quarto. Não é desagradável jantar assim, porque os queijos, os frios e os vinhos da Nova Zelândia são comparáveis aos bons franceses.  No dia seguinte ainda chovia e ventava muito, então segui para Makarora.