terça-feira, 25 de outubro de 2011

OUTER HEBRIDES, SCOTLAND (primeira parte)

"A louca agitação das vésperas de partida!
Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo
E a gente esquecendo o que devia trazer,
Trazendo coisas que deviam ficar...
Mas é que as coisas também querem partir,
As coisas também querem chegar
A qualquer parte! - desde que não seja
Este eterno mesmo lugar...
E em vão o Pai procura assumir o comando:
Mas acabou-se a autoridade...
Só existe no mundo esta grande novidade:
VIAJAR!" (Mario Quintana)
A escolha das Ilhas Hébridas como destino para esta viagem de bici deveu-se a  alguns fatores. O primeiro foi o fascínio que a Escócia sempre me exerceu. É um país que nunca foi totalmente dominado. É um povo que nunca se submeteu a outros povos, muito menos aos ingleses que marcam presença lá o tempo todo. Deram trabalho aos romanos, tanto que o imperador Adriano desistiu de conquistá-los e fez construir um muro, uma parede que delimitava o Império Romano e evitava a invasão daqueles povos  bárbaros da hoje a Escócia. É um povo diferente, descendente de eslavos , alegre, bem disposto, ordeiro e brincalhão, gentil e atencioso. O segundo atrativo foi conhecer as terras onde medram águas milagrosamente puras e aromáticas como a água abundante das milhares de fontes que dão origem à “água da vida” a “uisgue beatha”, o uísque. Na verdade o single malt. Uísque feito de apenas um malte, com características estranhamente próprias e diferentes das de qualquer outro, mesmo do produzido ao lado, pelo vizinho. O terceiro motivo foi o fato de a Escócia -as Ilhas Hébridas- constarem de uma seleta lista dos melhores locais do planeta para se pedalar. São motivos demais para deixar escapar. E não me decepcionei.
                                                   
Preferi ir direto a Glasgow. O vôo de Guarulhos a Londres é tranqüilo, aguarda-se aproximadamente duas horas no aeroporto de Heathrow, em Londres, e toma-se uma aeronave menor até Glasgow. A bagagem vai direto de Guarulhos a Glasgow, mas o check in deve ser feito novamente em Heathrow. No aeroporto de Londres a imigração é rápida e ordeira, tranquila, porém rigorosa. Foi a primeira vez que me revistaram em um aeroporto. O agente de segurança, de aspecto indiano, foi rápido e depois me agradeceu, respeitosamente. O voo de Londres a Glasgow  é de  aproximadamente duas horas e não se veem turistas no avião. Já dá para começar a formar um padrão do aspecto fisco do escocês típico. Bem brancos, as faces vermelhas, com cabelo tendendo ao ruivo. Não são gordos nem magros e não são tão altos. São de fácil falar. Vim conversando com um jovem  médico  que faria uma apresentação num congresso  em Glasglow sobre imunização em pacientes com imunodeficiência adquirida(Aids). Estava nervoso e não parava de ver os mesmos slides repetidamente. Como eu fazia nas minhas primeiras aulas em congressos. Eu estava sentado na poltrona do meio e à minha direita estava uma jovem senhora escocesa. Ela entrou na conversa, opinando sobre a importância do assunto da aula. Eles são assim, participam das conversas de estranhos, mas amigavelmente, cortesmente. Não é uma invasão. O desembarque em Glasgow é tranqüilo e rápido. Não tem que passar as malas pela alfândega. Os taxis na Escócia são padronizados, estilo carro antigo, quadrados, pretos, mas são incrivelmente espaçosos e confortáveis. E não são caros.  Mesmo assim fui de ônibus, por apenas 4,90 libras per capita até o centro da cidade, onde ficava meu hotel.Perguntei ao motorista para certificar-me se era aquele o ônibus que me deixaria próximo do hotel, ele confirmou. Quando chegou ao local, sem que eu pedisse, parou o ônibus, chamou-me e entregou-me  um mapa com setas que ela fez na hora, indicando o hotel, a apenas duas quadras. Fiquei num hotel da rede Ibis, Hotel Ibis Glasgow City Centre, bem central, ótima localização e preço.
Nesta noite fui  jantar no restaurante  "Two Fat Ladies" de frutos do mar e que tinha todas as indicações e elogios de todos os guias que vi. Como não tinha reserva, tive que esperar até às 22 horas por uma mesa. Para matar o tempo fui andar pelo centro da cidade. Afora as avenidas, as ruas de Glasgow são estreitas e parecem menores diante dos casarões de  estilo antigo, quadrados e sóbrios. O que chama a atenção, é a quantidade de jovens pelas ruas. Rindo, festivos, brincalhões. Era sexta-feira.  As moças, sempre de pernas grossas (essa é uma característica das escocesas, coxas grossas), usando saias incrivelmente curtas, apesar do vento frio que já soprava. Esses jovens entupiam os pubs, ficando nas calçadas, bebendo cerveja. Mas surpreendentemente, sem fazer algazarra, sem barulho, sem música alta. Apenas rindo e conversando. Eram amigáveis quando se passava entre eles, às vezes cumprimentando ou fazendo piada. Não há clima de tensão ali. É o que mais chama a atenção. Apesar de muitos jovens juntos e bebendo bastante, não há animosidade.
Um fato que aconteceu pode esclarecer um pouco mais a alma do escocês. Em determinado momento, comecei a ouvir sirenes de carros de bombeiros, vindo de todos os lados. Os carros pararam na frente de um daqueles pubs abarrotados, que provavelmente detectou fogo em suas dependências.  Ao que parece, o incêndio foi rapidamente controlado. Mas diferentemente de outros lugares da Europa e EUA, não se fez cordão de isolamento, não se empurrou a multidão, nenhum bombeiro parecia estressado tentando afastar a multidão gritando. Pelo contrário, alguns jovens, moças principalmente, correram para tirar fotos ao lado do caminhão e chamando os bombeiros para tirarem fotos com elas. E eles tiraram!!! Sorridentes! Parecia que os bombeiros eram seus amigos, que estavam ali para festejarem, além de apagar o fogo. Assim são os escoceses.







Deixei os jovens felizes ao lado dos caminhões de bombeiros e retornei ao restaurante, já próximo das 22 horas. E valeu a pena a espera. Na Escócia os frutos do mar são sempre frescos, assim como os peixes. A consistência macia e o sabor dos frutos do mar são incomparáveis. E no Two Fat Ladies os pratos eram simples, mantendo as características de sabor de cada ingrediente. As vieiras da entrada  eram enormes e tenras, grelhadas à perfeição, crocantes por fora e cremosas por dentro.A carta de vinhos do Two Fat Ladies é ótima. Tomei um sancerre de bom produtor do vale do Loire a preço quase de supermercado lá. Os restaurantes escoceses não têm o mau hábito tupiniquim de extorquir  freguês com o preço do vinho.


No dia seguinte fomos pegar o carro para ir ao aeroporto buscar meus companheiros de pedalada, minha irmã e meu cunhado. Já fizemos juntos o Caminho de Santiago pedalando e eles são ótimos companheiros. Sabem viajar com pouco e não reclamam de situações adversas. Ao pegar o carro, uma station wagon, senti um friozinho na barriga de enfrentar aquela série de rotatórias, avenidas e esquinas dirigindo na mão contrária. É preciso prestar atenção ao mapa(não me dou bem com GPS), às placas, ao trânsito e ficar na contramão o tempo todo. O pior são as rotatórias, dá um nó na cabeça ter que ficar o tempo todo na mão contrária. No aeroporto de Glasgow não há stress para estacionar. O estacionamento é amplo e há passarelas até o saguão de desembarque. Avistei logo meus companheiros  mas, surpresa: as malas não vieram. Problema da companhia aérea brasileira que perdeu uma das conexões e extraviou as malas. Resolvemos fazer a viagem planejada assim mesmo. Esperamos o Shopping abrir para comprar algumas roupas, compartilhei algumas minhas e fomos embora. Viajar com peregrinos(ambos fizeram mais de uma vez o Caminho de Santiago) é sempre bom. Tira-se sempre o bom das coisas, viaja-se e vive-se com pouco, adaptando-se às condições presentes. Há boas auto-estradas na Escócia e a sinalização é clara e suficiente.
Oban fica a 159km a  sudoeste do continente e é onde pegaríamos o ferry para as Hébridas. Toma-se uma auto-estrada durante aproximadamente uma hora, depois mais uma hora por uma estrada secundária extremamente tortuosa e estreita. Os escoceses correm muito e andam sempre de jipões 4x4. É complicado andar na contra mão fazendo curvas fechadas, correndo, com os carros passando a centímetros(literalmente) do seu carro. Como a estrada foi escavada na rocha, havia sempre uma parede de pedra a meu lado esquerdo-o lado contrário de onde estava  o volante.  Muitas vezes ouvi gritos de susto dos meus passageiros: -Essa foi por pouco. Por sorte todas foram.


Eu havia combinado com o Ben, da Nevis Cycles, nos encontrarmos às 13h no píer de Oban.  Nunca nos vimos e não sabíamos como nos identificar. Ele ligou para meu celular dizendo que já estava no porto. Como já tínhamos comprado as passagens pela internet, ficamos na fila e foi fácil localizá-lo, usando uma camisa marron com o logo da loja. Montamos o rack e as bicis. Ficou bom. Era um rack ótimo, para três bicis.
                                                                         
E mais uma demonstração de como é o povo escocês, a mulher do Ben, sem dizer nada, afastou-se um pouco depois nos disse: fiz uma reserva pra vocês no Castlebay Hotel. Ela havia buscado na internet, fez algumas ligações e fez a reserva. Sem que nem houvéssemos pedido, apenas sabendo de nossa preocupação. Há poucas lojas de bici que fazem esse tipo de serviço, levar as bicis onde você pede e buscá-las depois, mesmo em outro local. A Nevis Cycles faz. E de forma personalizada, amigável. Pode-se alugar também roupas, capacetes, luvas, protetores impermeáveis de pés(fundamentais), etc. Os ferrys têm horários definidos e rigorosos e vagas limitadas. É conveniente comprar com antecedência pela net.