"A louca agitação das vésperas de partida!
Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo
E a gente esquecendo o que devia trazer,
Trazendo coisas que deviam ficar...
Mas é que as coisas também querem partir,
As coisas também querem chegar
A qualquer parte! - desde que não seja
Este eterno mesmo lugar...
E em vão o Pai procura assumir o comando:
Mas acabou-se a autoridade...
Só existe no mundo esta grande novidade:
VIAJAR!" (Mario Quintana)
A escolha das Ilhas Hébridas como destino para esta viagem
de bici deveu-se a alguns fatores. O
primeiro foi o fascínio que a Escócia sempre me exerceu. É um país que nunca
foi totalmente dominado. É um povo que nunca se submeteu a outros povos, muito
menos aos ingleses que marcam presença lá o tempo todo. Deram trabalho aos
romanos, tanto que o imperador Adriano desistiu de conquistá-los e fez
construir um muro, uma parede que delimitava o Império Romano e evitava a
invasão daqueles povos bárbaros da hoje
a Escócia. É um povo diferente, descendente de eslavos , alegre, bem
disposto, ordeiro e brincalhão, gentil e atencioso. O segundo atrativo foi conhecer as terras onde medram águas
milagrosamente puras e aromáticas como a água abundante das milhares de fontes que
dão origem à “água da vida” a “uisgue beatha”, o uísque. Na verdade o single
malt. Uísque feito de apenas um malte, com características estranhamente
próprias e diferentes das de qualquer outro, mesmo do produzido ao lado, pelo
vizinho. O terceiro motivo foi o fato de a Escócia -as Ilhas Hébridas-
constarem de uma seleta lista dos melhores locais do planeta para se pedalar. São motivos demais para deixar escapar. E não me
decepcionei.
Preferi ir direto a Glasgow. O vôo de Guarulhos a Londres é
tranqüilo, aguarda-se aproximadamente duas horas no aeroporto de Heathrow, em
Londres, e toma-se uma aeronave menor até Glasgow. A bagagem vai direto de
Guarulhos a Glasgow, mas o check in deve ser feito novamente em Heathrow. No aeroporto de Londres a imigração é rápida e ordeira, tranquila,
porém rigorosa. Foi a primeira vez que me revistaram em um aeroporto. O agente de
segurança, de aspecto indiano, foi rápido e depois me agradeceu,
respeitosamente. O voo de Londres a Glasgow é de aproximadamente duas horas e não se veem turistas
no avião. Já dá para começar a formar um padrão do aspecto fisco do escocês
típico. Bem brancos, as faces vermelhas, com cabelo tendendo ao ruivo. Não são
gordos nem magros e não são tão altos. São de fácil falar. Vim conversando com
um jovem médico que faria uma apresentação num congresso em Glasglow sobre imunização em pacientes com
imunodeficiência adquirida(Aids). Estava nervoso e não parava de ver os mesmos
slides repetidamente. Como eu fazia nas minhas primeiras aulas em congressos. Eu
estava sentado na poltrona do meio e à minha direita estava uma jovem senhora escocesa.
Ela entrou na conversa, opinando sobre a importância do assunto da aula. Eles
são assim, participam das conversas de estranhos, mas amigavelmente, cortesmente.
Não é uma invasão. O desembarque em Glasgow é tranqüilo e rápido. Não tem que
passar as malas pela alfândega. Os taxis na Escócia são padronizados, estilo carro antigo,
quadrados, pretos, mas são incrivelmente espaçosos e confortáveis. E não são caros.
Mesmo assim fui de ônibus, por apenas
4,90 libras per capita até o centro da cidade, onde ficava meu hotel.Perguntei ao motorista para certificar-me se era aquele o
ônibus que me deixaria próximo do hotel, ele confirmou. Quando chegou ao local,
sem que eu pedisse, parou o ônibus, chamou-me e entregou-me um mapa com setas que ela fez na hora,
indicando o hotel, a apenas duas quadras. Fiquei num hotel da rede Ibis, Hotel Ibis Glasgow City Centre, bem central, ótima
localização e preço.
Nesta noite fui jantar no restaurante "Two Fat Ladies"
de frutos do mar e que tinha todas as indicações e elogios de todos os guias
que vi. Como não tinha reserva, tive que esperar até às 22 horas por uma mesa.
Para matar o tempo fui andar pelo centro da cidade. Afora as avenidas, as ruas de Glasgow são estreitas e parecem
menores diante dos casarões de estilo
antigo, quadrados e sóbrios. O que chama a atenção, é a quantidade de jovens pelas ruas.
Rindo, festivos, brincalhões. Era sexta-feira. As moças, sempre de
pernas grossas (essa é uma característica das escocesas, coxas grossas), usando
saias incrivelmente curtas, apesar do vento frio que já soprava. Esses jovens
entupiam os pubs, ficando nas calçadas, bebendo cerveja. Mas surpreendentemente,
sem fazer algazarra, sem barulho, sem música alta. Apenas rindo e conversando.
Eram amigáveis quando se passava entre eles, às vezes cumprimentando ou fazendo
piada. Não há clima de tensão ali. É o que mais chama a atenção.
Apesar de muitos jovens juntos e bebendo bastante, não há animosidade.
Um fato que aconteceu pode esclarecer um pouco mais a alma
do escocês. Em determinado momento, comecei a ouvir sirenes de carros de
bombeiros, vindo de todos os lados. Os carros pararam na frente de um daqueles pubs
abarrotados, que provavelmente detectou fogo em suas dependências. Ao que parece, o incêndio foi rapidamente
controlado. Mas diferentemente de outros lugares da Europa e EUA, não se fez
cordão de isolamento, não se empurrou a multidão, nenhum bombeiro parecia
estressado tentando afastar a multidão gritando. Pelo contrário, alguns jovens,
moças principalmente, correram para tirar fotos ao lado do caminhão e chamando
os bombeiros para tirarem fotos com elas. E eles tiraram!!! Sorridentes! Parecia que os bombeiros eram seus amigos, que estavam ali
para festejarem, além de apagar o fogo. Assim são os escoceses.
Oban fica a 159km a sudoeste do continente e é onde pegaríamos o
ferry para as Hébridas. Toma-se uma auto-estrada durante aproximadamente uma
hora, depois mais uma hora por uma estrada secundária extremamente tortuosa e
estreita. Os escoceses correm muito e andam sempre de jipões 4x4. É complicado
andar na contra mão fazendo curvas fechadas, correndo, com os carros passando a
centímetros(literalmente) do seu carro. Como a estrada foi escavada na rocha,
havia sempre uma parede de pedra a meu lado esquerdo-o lado contrário de onde
estava o volante. Muitas vezes ouvi gritos de susto dos meus
passageiros: -Essa foi por pouco. Por sorte todas foram.
E mais uma demonstração
de como é o povo escocês, a mulher do Ben, sem dizer nada, afastou-se um pouco
depois nos disse: fiz uma reserva pra vocês no Castlebay Hotel. Ela havia buscado na internet, fez algumas ligações e fez a
reserva. Sem que nem houvéssemos pedido, apenas sabendo de nossa preocupação. Há poucas lojas de bici que fazem esse tipo de serviço,
levar as bicis onde você pede e buscá-las depois, mesmo em outro local. A Nevis
Cycles faz. E de forma personalizada, amigável. Pode-se alugar também roupas,
capacetes, luvas, protetores impermeáveis de pés(fundamentais), etc. Os ferrys têm horários definidos e rigorosos e vagas
limitadas. É conveniente comprar com antecedência pela net.
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