Fiquei amigo do Neville e Hertha,um casal de australianos, de Perth, professores aposentados. Neville era um sujeito muito curioso, como eu, e nos demos muito bem com o biólogo. Fizemos o passeio todo aprendendo sobre a salinidade da água, peixes, vegetação, formações rochosas, clima e a história do capitão Cook, primeiro a navegar na região e por não ter entrado no fiorde (sound) com medo de não ter vento para retornar, acabou cunhando o seu nome: Doubtful Sound.
O passeio dura o dia todo. Chega-se de volta em Te Anau à noite. Naquela noite, próximo ao albergue, teve um show de música ao vivo para comemorar a passagem do ano novo. Após o jantar, sentamos na grama próximo ao palco. Diferentemente dos locais de show de música ao vivo, geralmente impraticáveis, ficamos muito à vontade ali. A banda tocava principalmente Beatles, Simon&Garfunkel e havia duplas de policiais andando o tempo todo pelo parque, para garantir nossa tranquilidade. Bebidas alcoólicas eram proibidas.
Na passagem do ano teve um show pirotécnico grandioso.
Fomos embora antes de terminar o show, por causa do frio, infelizmente.
No dia seguinte fomos fazer o trekking pelo Milford Sound. Logo cedo fomos de van até o lago Te Anau, onde o catamarã nos levou até o ponto de partida da trilha, éramos um grupo de sete turistas e um guia chamado Hunter.
Para entrar na trilha, ao sair do barco, foi necessário lavar os sapatos com líquidos germicidas, para evitar contaminação do parque com bactérias, sementes e fungos de outras regiões. O guia nos forneceu capa de chuva dizendo que chovia muito ali. E realmente precisamos usar a capa por algum tempo. A caminhada pela trilha de 11 km aproximadamente, durou 9h, com direito ao almoço no acampamento permanente no meio das montanhas.
A caminhada não foi fácil. Os outros turistas eram dois rapazes e duas garotas russos e um australiano. As moças mais baixas tinham minha altura 1,80 m. E todos sem exceção, tinham uns passos muito longos e muito rápidos.
Falei para o Hunter que da próxima vez iria com um grupo de japoneses, que dão passos mais curtos. O Hunter tinha que nos esperar o tempo todo deixando os russos e os australianos caminhando lá na frente. Alguns trechos da trilha eram muito estreitos obrigando-nos a nos esquivar dos galhos, pular árvores caídas, passar por debaixo dos troncos.
O Hunter era arqueólogo aposentado, tinha 69 anos, era alto, mais de 1,90 m, magro, com muita vitalidade e muito simpático. Fazíamos piada o tempo todo, ficamos amigos.
A subida íngreme era em solo argiloso, de raízes expostas, obrigando a colocar os pés entre as raízes, com o risco de fraturar a perna, caso enroscasse o pé e caísse.
Teve um trecho que tínhamos que caminhar pelo leito de um rio seco, pisando nas pedras pontudas, lisas. E olhando esbaforidos, os quatros russos e o australiano saltitantes lá na frente. Não dava pra parar, descansar, tomar fôlego. Não foi fácil. Foi uma surpresa muito agradável, quando no retorno após despedimo-nos dos russos, o Hunter convidar-nos para jantarmos com ele. Experimentaríamos "kiwi barbecue" como ele disse, era aniversário de uma amiga e sua esposa preparou o churrasco. Aceitei com muito prazer.
É bom conhecer pessoas de outros países, de outro continente, em sua intimidade, seu ambiente familiar.
Hunter perguntou se eu comia muito. Eu disse que sim, então passamos no supermercado para um reforço. Comprei costeleta de cordeiro para variar, e vinhos. Fiz questão de pagar embora ele insistisse que não.
Chegamos a uma casa simples, pequena, invisível da rua, cercada de plantas. O quintal era muito grande e comprido, com plantações de todos os tipos, era uma grande horta. Comemos saladas com folhas, legumes e feijões da horta e também batatas assadas do quintal.
A Frana, aniversariante, completava 70 anos, era uma mulher forte, nem gorda nem magra, rosto quadrado, olhar franco e alegre, sorriso largo. Foi nos mostrar a horta como se apresentasse um filho virtuoso. Sorridente, feliz, orgulhosa, tinha até uma “wormfarm”, criação de minhocas, para usar o húmus como fertilizante. Havia mais um casal, Wakelin e a esposa, Elizabeth, era diretora de uma escola.
O marido da Frana, Mark, era um sujeito atarracado, forte, queimado de sol, rosto largo e cabelos brancos e curtos, espigados e usava um brinco de argola, discreto, na orelha direita. Aparentava menos idade que a esposa, a Frana, e falava alto e despachadamente, parecia um marinheiro, ou um estivador, na aparência e nos modos.
Ele havia sido caçador profissional. Matava veados para o governo. Os veados haviam sido trazidos no início do século passado para servirem de alimento, como carne de caça, que eles chamam de “venison”, muito apreciada lá. Mas os animais saíram dos limites da criação e espalharam-se pelas planícies com alimento abundante e sem predadores naturais. Sua população cresceu a ponto de competir, nas pastagens, com as ovelhas e era necessário um controle. O governo pagava um bom valor a cada animal abatido.
Perguntou-me se eu caçava no Brasil. Disse-lhe que sim, quando era adolescente. Caçava pombas e algumas vezes pacas e veados. Perguntou-me a arma. Disse-lhe que era uma carabina Remington, semi automática, calibre .22RL. Ele riu, debochando: – Uma .22? Há, Há. Com isso você tem que encostar na caça. Tem que atirar a no máximo 50m de distância.
Ele usava um rifle Ruger .300 e atirava a 300 m de distância. Disse que a .22 quando acerta não derruba e o animal vai morrer longe de você. Concordei. Esse era o lado cruel de caçar com uma arma de calibre tão pequeno. Mas disse-lhe que nas poucas vezes em que cacei esses animais, atirava na cabeça ou na paleta e se não tivesse certeza de que fosse acertar, não atiraria.
Durante o jantar, o Hunter falou pouco, parecia cansado. Mas estava ansioso para contar ao amigo Mark uma história que se passou conosco durante a trilha.
Tivemos que atravessar um rio largo numa ponte muito estreita, de passagem individual, daquelas que balançam assustadoramente, como a ponte Capilano, do Indiana Jones ( essa ponte existe mesmo, em um parque em Vancouver Norte. Leva o nome de um chefe índio que habitava o local).
Era para conhecer um tipo diferente de vegetação da Ilha. O Hunter tinha profundo conhecimento de botânica também e era capaz de parar ao lado de um arbusto, uma árvore ou uma samambaia e ficar longos minutos falando das características da planta, de como evoluiu e mudou através dos períodos na Terra e das razões da mudança, numa aula extremante clara de darwinismo.
Deixamos as mochilas no chão porque voltaríamos ao mesmo lugar em uma ou 2 horas. Nossa mochila estava leve, com roupas de frio, água, repelente de insetos, filtro solar e equipamento fotográfico. Não era pesada e a Dely fazia questão de carregar. A mochila era dela e ela sempre a levava nas suas viagens.
Na volta, quando cada um foi pegar suas mochilas, os rapazes russos carregavam as mochilas do casal e a Dely carregava a nossa (a dela). O Hunter disse: - Almir, no Brasil quem carrega a mochila são as mulheres? Respondi que a mochila era dela, que eu não tinha mochila. Todos riram.
Então contei a história do índio que todos os dias passava na vila montado a cavalo e sua esposa ia atrás, carregando nas costas um pesado fardo. Depois de alguns dias, vendo a cena se repetir, um homem perguntou ao índio por que ele andava a cavalo, sem carregar nada e a mulher, carregada, ia a pé?
- Porque ela não tem cavalo, o índio respondeu. O Hunter gostou muito da história e a contou ao Mark logo após nos ter apresentado. O Mark disse que ia adotar a tática. Mas pela cara da Frana, não.
O tempo passou muito rápido na companhia deles e foi com certo pesar que me despedi. Tiramos algumas fotos juntos e fomos embora.
Ao nos despedimos-nos já noite, a Frana disse-nos que se tivesse qualquer problema, entrasse em contato com ela e deu-nos o seu cartão, Mayor Frana Cardno. Ela era prefeita da ilha Sul. Ficamos supresos. Simples, nada excêntrica, não era rica. Mas bem humorada, inteligente, culta, ativa. Como deveriam ser os prefeitos.